Jogador
de futebol era profissão maldita na Santo Antônio da Platina do início dos
anos 80. Barreira criada pela vida desregrada, repleta de histórias em mesas de
bar, de boleiros que haviam passado pela cidade na curta existência do
Agroceres, na década anterior. Por isso a vizinhança da república dos jogadores
da Platinense era zona proibida para moças de família. “Tinha pai que não
queria a filha nem conversando com jogador”, lembra Marquinhos Ferreira.
Claudinho
deu sorte. O pai de Graça havia sido goleiro da Cambaraense nos bons tempos,
década de 60. Sua casa era um ponto de encontro dos atletas da Platinense.
Casar a filha com um boleiro, um sonho reprimido. “Então num fim de ano ele
ligou para desejar feliz Natal e ano novo para a minha mãe. Eu atendi, a gente
ficou conversando e logo depois começou a namorar”, conta Graça.
Nascido
em Catanduva, interior de São Paulo, Claudinho casou, teve um filho --
Matheus, hoje de 20 anos -- e fixou residência na cidade. O mesmo fez Marquinhos
Ferreira, paulista de Araraquara. O mesmo fizeram outros 15 jogadores que
deixaram o seu estado, em
regra São Paulo , para formar o melhor time que Santo Antônio
da Platina já viu.
A
conquista de tantos sogros tem influência direta da disciplina rígida imposta
pelo técnico Zezito. “Não podia nem andar de bermuda e chinelo”, diz Claudinho.
Mas nada foi mais poderoso do que as façanhas do time dentro de campo. Em cinco
anos, de 1985 a
89, a
Platinense venceu a segunda divisão e foi duas vezes quinta colocada na
primeira do Paranaense. Revelou jogadores como Claudinho, o artilheiro que
seria o último camisa 9 da história do Pinheiros; Marquinhos Ferreira, o
cérebro do meio-campo da Platinense, multicampeão pelo Paraná e camisa 10 de um
Coritiba em que despontava um certo Alex; Valdir, volante que, com a camisa do
Atlético, chegaria à seleção brasileira; Fabinho, camisa 7 no primeiro título
brasileiro do Corinthians, em 1990, entre outros. Um time que construiu uma
comunhão rara com sua cidade e sua torcida.
O
café já era uma cultura ultrapassada e pouco lucrativa. Os times do Norte
Pioneiro que sobreviviam eram times de dono. O União do Serafim Meneghel. O
Matsubara do Sueo. “A Platinense era do povo”, crava o médico Luciano Dias dos
Reis.
Gastroenterologista,
ele participou ativamente dessa relação. Fazia parte de um grupo de oito
médicos que corriam pela cidade um livro para arrecadar contribuições de
comerciantes e torcedores. Recurso investido na manutenção da república, no
pagamento de bichos e salários. Quem não tinha dinheiro ajudava em serviços. Dono de
malharia fazia os uniformes, pecuarista matava um boi, agricultor cedia saca de
arroz, feijão e outros alimentos.
Uma
das formas de incentivo ganhou o espirituoso nome de “caveirinha de ouro”,
alusão à profissão do grupo de médicos. “Por volta dos 30 do segundo tempo de
cada jogo, nos reuníamos para votar no melhor em campo. Cada um casava
100 reais no dinheiro de hoje e no vestiário a gente entregava para o vencedor.
Com o tempo, até a Rádio Difusora [principal emissora da cidade] começou a
divulgar a caveirinha de ouro”, relembra Reis.
Claudinho
ganhou inúmeras caveirinhas. A mais marcante foi no fim de 1985, amistoso
contra o Coritiba campeão brasileiro, no José Eleutério da Silva lotado – como
sempre. O jogo acabou 3 a
3 e Claudinho marcou os três gols. “Sabíamos que o nosso time era bom, mas ali
que a gente sentiu a força real dele”, conta Marquinhos.
Força
sentida pelo estado inteiro nos quatro anos seguintes, período em que a
Platinense manteve-se entre as maiores forças do Paranaense. Como se já não
bastasse a capacidade do time, as arquibancadas tornavam as idas ao José Eleutério
da Silva uma visita ao inferno. Obra da TIP (Torcida Inglesa da Platinense)
nome mais politicamente incorreto impossível para uma organizada criada à
sombra do Desastre de Heysel, provocado pelos hooligans do Liverpool, na final
da Copa dos Campeões da Europa de 1985. Um arrastão dos fãs dos Reds na
arquibancada, antes do jogo, causou a morte de 35 torcedores da Juventus.
“A
gente ia no campo para minar o adversário”, começa Neguinho, hoje um tranquilo
funcionário público de 55 anos. “Fazíamos um inferno. A bateria agitava o tempo
todo. Atlético e Coritiba tinham medo de jogar aqui”, prossegue Nenego,
dentista de 60 anos. “E ainda tinha o nosso maqueiro, que ficou conhecido em
todo o Brasil por jogar os adversários no gramado”, acrescenta Claudinei,
pediatra, de 60 anos, para risos do grupo que ainda tinha José Roberto Vivan,
um dos médicos da caveirinha de ouro.
A
devoção dos torcedores criou uma cumplicidade com o time. Acabava o jogo, iam
todos comemorar. Uma amizade que persiste até hoje com aqueles que fixaram
residência na cidade. “A gente carregava jogador nas costas até o bar depois
que ganhava. Deixava família, deixava tudo de lado por causa da Platinense”,
diz Neguinho.
A
paixão fulminante entre a cidade e a Platinense acabou sem que ninguém saiba ao
certo a razão. A reposição do time dos anos 80 não foi das melhores, os bons
resultados rarearam e o interesse da cidade diminuiu, junto com o dinheiro. O
time ainda resistiu até 1993, com uma passagem rápida pela segunda divisão.
Houve tentativas de resgatar o clube nos últimos 20 anos. Todas patrocinadas
por empresários do futebol, a maioria deixando dívidas na cidade.
Em
2012, até uniforme chegou a ser feito. A inscrição da equipe na terceira
divisão, porém, não foi aceita e o projeto acabou sem sequer ter começado.
Deixou a cidade por mais um tempo à espera de um time capaz de fazer seus
torcedores correrem para o estádio. E de suas famílias entregarem a filha sem
medo a um jogador de futebol.
FONTE: Jornal Gazeta do Povo - Resgate Histórico
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